Aldeia Katukina. Foto: OPAN
Os Katukina, autodenominados tuküna, vivem ao longo do rio Biá, afluente do rio Jutaí, no Amazonas. Sua história está fortemente marcada pelos impactos derivados da irrupção da frente seringueira na Amazônia, desde finais do século XIX. Suas terras tradicionais foram ocupadas por seringueiros procedentes do Nordeste brasileiro e do Peru. Com o colapso do seringalismo, os Katukina do Biá conseguiram retomar o domínio do seu território (homologado pelo governo brasileiro em 1997) e fortaleceram suas aldeias e seu modo de vida, caracterizado por práticas tradicionais de caça e pesca, agricultura de roça e coleta silvestre, assim como por uma intensa vida ritual.
Numa noite de inverno, após as danças da festa do haihai, Kododon – liderança da aldeia Gato – me contou uma história que revela as marcas do convívio que os katukina mantiveram com os seringueiros nordestinos, em tempos passados. ‘Koni kidak’, história antiga, ele me disse…: o protagonista é ‘Pedro, o Mentiroso’, um anti-herói capcioso, cheio de criatividade e astúcia, cujas peripécias Kododon narrava com seu bom humor peculiar, sutil. Uma história ‘estranha’, onde a trajetória ardilosa de Pedro se cruza com Adão no céu, com relatos sobre dilúvios universais e com mitos sobre a origem dos diversos povos.
Meses depois de escutar esta história, caíram em minhas mãos os escritos de Câmara Cascudo, o folclorista norte-rio-grandense, sobre as Aventuras de Pedro Malazarte. Fiquei surpreso pela coincidência imensa entre as narrações deste personagem da tradição oral nordestina e as histórias que Kododon me relatou. Sem dúvida, Kododon tinha aprendido dos mais velhos da aldeia as histórias sobre Pedro, o Mentiroso. Mas as semelhanças entre o Malazarte do sertão e o Pedro da memória katukina eram muito fortes: logo percebi que me encontrava perante um inquietante vestígio do passado seringueiro em terra katukina. Imaginei como, em décadas passadas, seringueiros do nordeste – lançados ao desconhecido nas florestas da Amazônia – contaram aos katukina, à beira do Biá, as histórias e tradições da sua terra. A convivência foi tão estreita que estas histórias de sertão acabaram transformando-se, para os katukina, nas suas próprias histórias, reinventadas à luz da sua visão do mundo…
Pedro, koaranin bak (Pedro, o Mentiroso)
Pedro estava em casa com a sua mãe e com o seu irmão. O irmão de Pedro disse:
– Olhe, Pedro, eu vou ter que sair. Aqui em casa tem café e tabaco, vocês podem tomar café e fumar.
O irmão saiu e Pedro preparou uma panela de café. Sua mãe estava sentada, Pedro se aproximou com a panela de café quente e disse:
– Mãe, aqui está o café, toma – e despejou todo o café, quentíssimo, na garganta da mãe. Ela morreu e seu corpo permaneceu rígido na cadeira.
O irmão voltou a casa e disse:
– Pedro, cadê a mamãe?
– Ela está ai, está bem, está tudo bem com ela. Meu irmão – prosseguiu ele –, eu vou sair agora, fique você aí com a mãe.
Pedro foi embora; somente depois o seu irmão percebeu que ele tinha matado a mãe; saiu atrás, mas Pedro já tinha fugido e estava longe.
Chegou à casa de um seringueiro que criava muitos porcos. Conversaram, e o homem fez um pedido a Pedro:
– Pedro, eu vou passear na cidade, você pode ficar aí cuidando dos meus porcos?
– Pode ir tranqüilo, eu vou cuidar deles, vão estar bem gordos quando você voltar.
Quando o homem foi embora, Pedro matou três porcos e vendeu a carne deles. Num poço de lama, colocou as orelhas dos porcos fincadas no chão, sobressaindo. O seringueiro voltou do passeio e perguntou pelos porcos. Pedro disse:
– Está tudo bem. Os porcos estão tão gordos que eles afundaram na lama, de tanto peso!
– Vamos tirá-los daí – disse o homem–, vai lá em casa e pega uma enxada.
Quando chegou à casa, Pedro disse à mulher do dono dos porcos:
– Olhe, eu vim aqui porque o seu marido pediu que eu transasse com você…
– Ele pediu isso? – disse a mulher, surpresa.
– Sim, ele quer que nós transemos.
Entraram na casa e Pedro transou com a mulher do seringueiro. O filho dela viu os dois juntos, então Pedro saiu correndo e fugiu. Pouco tempo depois chegou o homem e disse à sua mulher:
– Cadê o Pedro, ele não veio pegar a enxada?
– Que enxada? – replicou a mulher. Ele veio aqui e disse que você tinha permitido que ele transasse comigo, e nós transamos.
O homem ficou enfurecido, pegou o rifle e saiu em perseguição a Pedro.
Pedro chegou a um lugar onde uma pessoa estava matando um carneiro. Pegou a tripa do carneiro, colocou-a debaixo de suas roupas, na barriga, e foi embora. Chegou à casa de outro homem e disse:
– Dê-me uma faca, vou cortar minha barriga e assim poderei correr mais.
Então enfiou a faca na tripa do carneiro que estava sobre a sua barriga, jogou a tripa no chão e saiu depressa. Era mentira, tratava-se em realidade das tripas do carneiro e não as dele. Pouco depois chegou aquele seringueiro a quem Pedro tinha enganado com os porcos e com a esposa. O homem chegou com muita raiva e perguntou pelo Pedro. As pessoas contaram que ele tinha passado correndo e que tinha cortado a própria barriga para poder fugir mais depressa. Então o homem fez a mesma coisa: pediu uma faca, cortou a sua barriga e caiu morto.
Pedro estava escondido e pensou: “Ele já deve ter morrido”. Estava com fome e continuou andando,
procurando agora onde comer. Seguiu por um caminho e chegou a uma praia onde havia mais pessoas. Um batelão ia acostando à beira da praia. Pedro colocou uma panela suspensa num ferro fincado na areia. Na verdade, não havia nada na panela: não havia fogo, só um ferro parecido com um fogão e a panela sobre o mesmo. Tudo era mentira de Pedro. A pessoa do barco chegou, Pedro disse:
– Traga o peixe, traga um tambaqui, eu vou cozinhá-lo no meu ferro.
Cozinharam o tambaqui e foram comer. Pedro disse:
– Este ferro é bom, é fácil cozinhar nele e não dá trabalho, nem precisa fazer fogo. Eu vou lhe dar o ferro.
No outro dia foram cozinhar de novo, mas Pedro já tinha ido embora. O homem pegou o ferro, porém não conseguiu cozinhar: ele também tinha sido enganado por Pedro.
Depois Pedro chegou à casa de outro seringueiro. Ele tinha três pimentas, uma pequena, outra comprida, outra redonda. Então disse ao homem:
– Vamos comer!
Pegou uma pimenta, que se transformou em pirarucu; pegou outra pimenta, e ela se transformou em matrinxã; pegou mais outra, que virou tambaqui. O homem ficou admirado, e Pedro disse:
– Eu vou te dar as pimentas, você poderá plantá-las. Dessa forma você poderá ir trabalhar sem preocupar-se com o trabalho da pesca. É só pegar as pimentas e comer peixe, elas virarão peixe.
O homem achou bom, mas era mentira do Pedro, que foi embora de novo.
Seguindo seu caminho, chegou à sombra de uma árvore de mari; havia muitas flores no chão. Colocou uma lona no chão para pegar as flores, que se transformavam em dinheiro. Era mentira: na verdade, Pedro tinha dinheiro, subia na árvore de mari e colocava o dinheiro nos galhos. Quando as flores caiam, o dinheiro caia também. Um homem chegou, Pedro conversou com ele e disse:
– Fique aqui, balance os galhos da árvore e assim você poderá pegar muito dinheiro – e mostrou um monte de dinheiro em suas mãos. Pedro foi embora, o homem ficou esperando o dinheiro cair, chacoalhou a árvore, apenas caiu uma moedinha que Pedro tinha deixado num galho.
Ao longo do seu percurso, Pedro carregava uma sacola com um urubu dentro. Encontrou outra pessoa e disse:
– Vamos comer!
Pedro apertou a sacola e, nesse momento, se escutou um barulho: “chuu, chuu”; e apareceu café. Tomaram juntos o café. Pedro apertou de novo a sua sacola, se escutou de novo o barulho: “chuu, chuu”; e apareceram umas bolachas. Comeram as bolachas e, mais uma vez, se escutou o barulho da sacola: “chuu, chuu”; apareceu pão, que eles comeram. Depois apertou outra vez: “chuu, chuu”; apareceu caldo. Apertou a sacola: “chuu, chuu”; apareceu carne. Já para terminar, Pedro apertou a sacola e apareceu água, que eles beberam. O homem disse a Pedro:
– A tua criação é muito boa.
– Está bom – respondeu Pedro –, amanhã eu vou dar a você a minha criação. É bom para ir ao mato, a pessoa pode comer e ficar cheia.
No dia seguinte, Pedro pegou a sacola, apertou: “chuu, chuu”, apareceu café, e ele o tomou. Então Pedro foi embora e deixou a sacola. O homem estava transando com a sua mulher. O urubu saiu da sacola, entrou no quarto do casal e deu uma bicada na vagina da mulher, que gritou assustada. O homem se levantou com raiva e correu atrás de Pedro, que já tinha fugido. Não conseguiu achar a Pedro.
Pedro caminhou longe, muito longe, lá onde o céu se encontra com a terra. Queria subir ao céu para encontrar com Topana, mas Jurupari não permitiu. Jurupari disse:
– Só as almas podem subir.
Pedro replicou:
– Deixa falar com Topana.
– Não – respondeu Jurupari.
– Deixa falar com Topana.
– Não, não deixo, não pode.
Pedro insistiu muitas vezes, até que finalmente subiu ao céu. Viu Adão, que estava trabalhando com dinheiro e com livros. Adão estava sozinho.
– Vou trabalhar com Adão – disse Pedro. Mas Jurupari respondeu:
– Não, Adão fica sozinho, você não vai trabalhar com ele.
Jurupari tinha um camburão, um tacho muito grande onde estava esquentando breu. Jurupari advertiu-o:
– Você vai morrer, Pedro, eu vou jogar este breu bem quente na sua cabeça.
– Não precisa, Jurupari, dá-me a concha que eu mesmo irei derramar o breu quente na minha cabeça. Pedro estava mentindo. Quando Jurupari foi entregar-lhe a concha com breu, Pedro fez virar o tacho. Jurupari e muitas pessoas morreram. Então Pedro foi ao encontro de Topana.
Topana e Pedro conversaram. Topana disse a Pedro:
– Amanhã você vai descer à Terra.
Tinha acontecido uma grande alagação durante cinco dias, todos os homens e os animais tinham morrido. Topana mandou Pedro buscar areia, para ver se a terra tinha começado a secar depois da inundação. Topana queria que Pedro voltasse logo ao céu, mas Pedro não regressou. Pedro comeu os corpos mortos que estavam espalhados pela Terra e se transformou em urubu. Topana enviou a pomba boro, para que procurasse areia e trouxesse noticias de Pedro. Topana disse à pomba:
– Vai e não demora, você tem pouco tempo para retornar e contar-me o que aconteceu.
A pomba boro regressou e disse:
– Topana, Pedro virou urubu e não vai voltar; a terra já está seca, já há areia descoberta. Há muitos ossos espalhados. Pedro comeu a carne dos mortos, e só restaram os ossos.
Topana desceu à Terra com um livro grande, bapiro, só encontrou as ossadas, as almas estavam andando pela Terra. Pegou o livro e foi juntando os ossos dos mortos: juntava os braços, as pernas e a cabeça das pessoas. Topana passava por cima dos mortos, e eles reviviam. Topana perguntou a um deles:
– O que é que você vai fazer?
– Eu vou trabalhar na roça.
Então Topana dava uma mulher para essa pessoa.
– Fica para lá – disse Topana, e o homem ficou a um lado. Topana perguntou a outro:
– O que é que você vai fazer?
– Eu vou cortar seringa, vou ser seringueiro.
E Topana deu-lhe também uma mulher e pediu que ficasse a um lado. Topana continuou perguntando aos outros:
– E você, o que é que quer fazer?
– Não, eu não vou trabalhar, vou ficar assim mesmo.
– Então você vai para a água, vai virar peixe.
E assim aconteceu com os mortos que reviviam. Àqueles que queriam trabalhar, Topana dava uma mulher, e ficavam a um lado. De outro lado ficavam aqueles que não queriam trabalhar, e então viravam peixes e animais da água. Os que trabalhavam se transformaram em gente: uns em katukina, outros em kulina, outros em kanamari, outros em seringueiros. Os que não trabalhavam, iam para as águas e se transformavam em cobra, em sucuriju, em pirarucu e em peixes diversos.
Há muitas histórias sobre Pedro. Há também histórias de Tokaneri, que era igual ao Pedro…
Por Miguel Aparício Suárez (Operação Amazônia Nativa (OPAN) – miguelapas@yahoo.com.br).
Miguel Aparicio é antropólogo e atuou principalmente junto aos povos Suruaha (1995-2001) e Katukina do Biá (2004-2007), respectivamente nas regiões dos rios Purus e Jutaí, no Amazonas. É membro da Operação Amazônia Nativa (OPAN) e atualmente coordena o Projeto Aldeias – Conservação na Amazônia Indígena, apoiando processos de gestão territorial em diversas terras indígenas das bacias dos rios Purus, Juruá e Jutaí. Miguel integra também a coordenação do Fórum Mato-grossense de Meio Ambiente e Desenvolvimento (FORMAD).