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O Lago Paranoá, localizado na cidade de Brasília-DF, assemelha-se a um espelho d’água tamanha a calma que ele transmite. Nesse ambiente, encontramos bandos de biguás sobrevoando as águas, garças pousadas nas margens, libélulas e inumeráveis insetos voando na vegetação ribeirinha. Esse era o cenário que eu encontrava quase todas as manhãs enquanto fazia o trabalho de campo da minha dissertação de mestrado. Quase, como explicarei a seguir.

Como a pesquisa não respeita sábado, domingo ou feriado, a coleta de dados não parava. Minha pesquisa era sobre o comportamento sexual de uma espécie de libélula que ainda não tem um nome popular. Eu chegava por volta das nove da manhã no Lago Paranoá, horário de início das atividades das libélulas, quando os machos começam a disputar territórios nos galhos da vegetação ribeirinha e as fêmeas a pôr ovos nas plantas localizadas na superfície da água. Minha rotina: chegar ao lago, sortear uma área, capturar em torno de 30 animais, medi-los, marcá-los e devolvê-los ao ambiente. Esperava quinze minutos, após esse primeiro momento, até os animais superarem o estresse da coleta e, em seguida, sorteava um animal para começar as observações. Cada observação focal de um animal demorava cerca de quarenta minutos. Eu anotava todas as interações desse macho focal com outros machos ao redor, bem como seu comportamento durante e após essas interações. Qualquer perturbação na água fazia com que a vegetação se movesse e, em conseqüência disso, os animais voavam para longe e eu perdia a observação.

Durante a semana, essas interrupções aconteciam com a chegada de policiais militares que policiavam o lago para fiscalizar a pesca e outras atividades proibidas. Como eu tinha autorização para a coleta, não me perturbavam, mas as observações, sim! Elas eram interrompidas e eu perdia os dados do macho focal observado naquele momento. Nos finais de semana e feriados era bem pior. A quantidade de lanchas, barcos e jet skis era inacreditável! Minhas tentativas de observação nesses dias eram infrutíferas, pois sempre, de quinze em quinze minutos, passava uma dessas embarcações. O resultado dessa infeliz intervenção aquática era a formação de ondas (as famosas marolas), a movimentação da vegetação e a fuga dos animais para longe. Ou seja, eu perdia todos os animais marcados e todas as observações! Resultado: parei de ir nessas datas e concentrei minha coleta nos outros dias da semana, o que me rendeu mais de 400 animais marcados e 50 observações de interações. Um bom número para desenvolver um capítulo de mestrado!

O que mais me surpreendia, além de ficar irritada por perder minhas observações, é que ninguém parava para contemplar o Lago, na sua tranqüilidade e diversidade. Estavam presentes ali as mais diferentes formas de vida, e ninguém via. Preferiam a perturbação à calmaria.

Por: Carolina Bernardo (bióloga e orientadora acadêmica de biologia da UAB/TO – caroltsbernardo@gmail.com)

Divisor

Não fui eu quem escolhi a área onde desenvolvo minha pesquisa. As plantas é que me mandaram para lá. Dentre as muitas montanhas que compõem a cadeia do Espinhaço, aconteceu de as plantas que investigo ocorrerem bem naquela.

Essas plantas, que são minúsculas e nem sequer têm nomes populares para que eu as apresente a vocês – exceto o de sempre-vivas, que é um nome genérico –, são raras e só existem nessas montanhas. Ter encontrado todas as espécies do meu estudo em uma só área foi uma sorte. Sorte também foi descobri-las bem no divisor de bacias hidrográficas da região. Aquela montanha, alta e comprida, é como uma cumeeira que divide as bacias do Rio Doce e do São Francisco. Ela limita o Parque Nacional da Serra do Cipó. E, no meu imaginário, faz ainda uma divisão importante, ficcional: a divisão entre dois mundos, como vou explicar.

As populações das plantas que estudo estão ligeiramente deslocadas para a vertente oeste da montanha. Ali, passo dias medindo, contando, coletando, observando, tentando entender padrões, trabalhando com ciência. Ao longe, por detrás do Quênion das Éguas, assisto ao sol se pôr. A igrejinha, muito branca, construída sobre a rocha, destaca-se na paisagem quase sem obras. Além dela, vejo alguns lotes com a terra revolvida, erosões aqui e ali, uma casa e uma curva da estrada. Sob a luminosidade desse horário, os afloramentos de quartzito ganham inusitados tons azulados e arroxeados, até que vem a noite. Isso só se pode ver nessa face da montanha, por causa da orientação dos afloramentos (que apontam todos para o oeste) e da forma como refletem a claridade do céu.

Alguns metros acima, chega-se às rochas da cumeeira. De lá, vejo a outra face da serra. É lá que o sol nasce e de onde se vislumbra, ao amanhecer, o tapete do nevoeiro sobre os vales. De lá vem a lua. Nenhuma casa, estrada ou lote podem ser vistos, apenas a sucessão interminável de montanhas, campos, vales e afloramentos rochosos. E as nuvens, deslizando lentamente no alegre azul do céu.

Ainda que eu não possa ver, sei que a oeste está Belo Horizonte, de onde eu venho e para onde retorno quando o trabalho termina. No lado oposto, ficam pequenos vilarejos, isolados entre montanhas, lugares desconhecidos, e a natureza selvagem e misteriosa. É para lá que eu gosto de olhar.

Por: Ana Carolina neves (Instituto Biotrópicos – ananeves@biotropicos.org.br)

Aldeia Katukina. Foto: OPAN

Os Katukina, autodenominados tuküna, vivem ao longo do rio Biá, afluente do rio Jutaí, no Amazonas. Sua história está fortemente marcada pelos impactos derivados da irrupção da frente seringueira na Amazônia, desde finais do século XIX. Suas terras tradicionais foram ocupadas por seringueiros procedentes do Nordeste brasileiro e do Peru. Com o colapso do seringalismo, os Katukina do Biá conseguiram retomar o domínio do seu território (homologado pelo governo brasileiro em 1997) e fortaleceram suas aldeias e seu modo de vida, caracterizado por práticas tradicionais de caça e pesca, agricultura de roça e coleta silvestre, assim como por uma intensa vida ritual.

Numa noite de inverno, após as danças da festa do haihai, Kododon – liderança da aldeia Gato – me contou uma história que revela as marcas do convívio que os katukina mantiveram com os seringueiros nordestinos, em tempos passados. ‘Koni kidak’, história antiga, ele me disse…: o protagonista é ‘Pedro, o Mentiroso’, um anti-herói capcioso, cheio de criatividade e astúcia, cujas peripécias Kododon narrava com seu bom humor peculiar, sutil. Uma história ‘estranha’, onde a trajetória ardilosa de Pedro se cruza com Adão no céu, com relatos sobre dilúvios universais e com mitos sobre a origem dos diversos povos.

Meses depois de escutar esta história, caíram em minhas mãos os escritos de Câmara Cascudo, o folclorista norte-rio-grandense, sobre as Aventuras de Pedro Malazarte. Fiquei surpreso pela coincidência imensa entre as narrações deste personagem da tradição oral nordestina e as histórias que Kododon me relatou. Sem dúvida, Kododon tinha aprendido dos mais velhos da aldeia as histórias sobre Pedro, o Mentiroso. Mas as semelhanças entre o Malazarte do sertão e o Pedro da memória katukina eram muito fortes: logo percebi que me encontrava perante um inquietante vestígio do passado seringueiro em terra katukina. Imaginei como, em décadas passadas, seringueiros do nordeste – lançados ao desconhecido nas florestas da Amazônia – contaram aos katukina, à beira do Biá, as histórias e tradições da sua terra. A convivência foi tão estreita que estas histórias de sertão acabaram transformando-se, para os katukina, nas suas próprias histórias, reinventadas à luz da sua visão do mundo…

 

Pedro, koaranin bak (Pedro, o Mentiroso)

Pedro estava em casa com a sua mãe e com o seu irmão. O irmão de Pedro disse:

– Olhe, Pedro, eu vou ter que sair. Aqui em casa tem café e tabaco, vocês podem tomar café e fumar.

O irmão saiu e Pedro preparou uma panela de café. Sua mãe estava sentada, Pedro se aproximou com a panela de café quente e disse:

– Mãe, aqui está o café, toma – e despejou todo o café, quentíssimo, na garganta da mãe. Ela morreu e seu corpo permaneceu rígido na cadeira.

O irmão voltou a casa e disse:

– Pedro, cadê a mamãe?

– Ela está ai, está bem, está tudo bem com ela. Meu irmão – ­prosseguiu ele –, eu vou sair agora, fique você aí com a mãe.

Pedro foi embora; somente depois o seu irmão percebeu que ele tinha matado a mãe; saiu atrás, mas Pedro já tinha fugido e estava longe.

Chegou à casa de um seringueiro que criava muitos porcos. Conversaram, e o homem fez um pedido a Pedro:

– Pedro, eu vou passear na cidade, você pode ficar aí cuidando dos meus porcos?

­– Pode ir tranqüilo, eu vou cuidar deles, vão estar bem gordos quando você voltar.

Quando o homem foi embora, Pedro matou três porcos e vendeu a carne deles. Num poço de lama, colocou as orelhas dos porcos fincadas no chão, sobressaindo. O seringueiro voltou do passeio e perguntou pelos porcos. Pedro disse:

– Está tudo bem. Os porcos estão tão gordos que eles afundaram na lama, de tanto peso!

­– Vamos tirá-los daí – disse o homem–, vai lá em casa e pega uma enxada.

Quando chegou à casa, Pedro disse à mulher do dono dos porcos:

– Olhe, eu vim aqui porque o seu marido pediu que eu transasse com você…

– Ele pediu isso? – disse a mulher, surpresa.

– Sim, ele quer que nós transemos.

Entraram na casa e Pedro transou com a mulher do seringueiro. O filho dela viu os dois juntos, então Pedro saiu correndo e fugiu. Pouco tempo depois chegou o homem e disse à sua mulher:

– Cadê o Pedro, ele não veio pegar a enxada?

­– Que enxada? – replicou a mulher. Ele veio aqui e disse que você tinha permitido que ele transasse comigo, e nós transamos.

O homem ficou enfurecido, pegou o rifle e saiu em perseguição a Pedro.

Pedro chegou a um lugar onde uma pessoa estava matando um carneiro. Pegou a tripa do carneiro, colocou-a debaixo de suas roupas, na barriga, e foi embora. Chegou à casa de outro homem e disse:

­– Dê-me uma faca, vou cortar minha barriga e assim poderei correr mais.

Então enfiou a faca na tripa do carneiro que estava sobre a sua barriga, jogou a tripa no chão e saiu depressa. Era mentira, tratava-se em realidade das tripas do carneiro e não as dele. Pouco depois chegou aquele seringueiro a quem Pedro tinha enganado com os porcos e com a esposa. O homem chegou com muita raiva e perguntou pelo Pedro. As pessoas contaram que ele tinha passado correndo e que tinha cortado a própria barriga para poder fugir mais depressa. Então o homem fez a mesma coisa: pediu uma faca, cortou a sua barriga e caiu morto.

Pedro estava escondido e pensou: “Ele já deve ter morrido”. Estava com fome e continuou andando,

procurando agora onde comer. Seguiu por um caminho e chegou a uma praia onde havia mais pessoas. Um batelão ia acostando à beira da praia. Pedro colocou uma panela suspensa num ferro fincado na areia. Na verdade, não havia nada na panela: não havia fogo, só um ferro parecido com um fogão e a panela sobre o mesmo. Tudo era mentira de Pedro. A pessoa do barco chegou, Pedro disse:

– Traga o peixe, traga um tambaqui, eu vou cozinhá-lo no meu ferro.

Cozinharam o tambaqui e foram comer. Pedro disse:

– Este ferro é bom, é fácil cozinhar nele e não dá trabalho, nem precisa fazer fogo. Eu vou lhe dar o ferro.

No outro dia foram cozinhar de novo, mas Pedro já tinha ido embora. O homem pegou o ferro, porém não conseguiu cozinhar: ele também tinha sido enganado por Pedro.

Depois Pedro chegou à casa de outro seringueiro. Ele tinha três pimentas, uma pequena, outra comprida, outra redonda. Então disse ao homem:

– Vamos comer!

Pegou uma pimenta, que se transformou em pirarucu; pegou outra pimenta, e ela se transformou em matrinxã; pegou mais outra, que virou tambaqui. O homem ficou admirado, e Pedro disse:

– Eu vou te dar as pimentas, você poderá plantá-las. Dessa forma você poderá ir trabalhar sem preocupar-se com o trabalho da pesca. É só pegar as pimentas e comer peixe, elas virarão peixe.

O homem achou bom, mas era mentira do Pedro, que foi embora de novo.

Seguindo seu caminho, chegou à sombra de uma árvore de mari; havia muitas flores no chão. Colocou uma lona no chão para pegar as flores, que se transformavam em dinheiro. Era mentira: na verdade, Pedro tinha dinheiro, subia na árvore de mari e colocava o dinheiro nos galhos. Quando as flores caiam, o dinheiro caia também. Um homem chegou, Pedro conversou com ele e disse:

– Fique aqui, balance os galhos da árvore e assim você poderá pegar muito dinheiro – e mostrou um monte de dinheiro em suas mãos. Pedro foi embora, o homem ficou esperando o dinheiro cair, chacoalhou a árvore, apenas caiu uma moedinha que Pedro tinha deixado num galho.

Ao longo do seu percurso, Pedro carregava uma sacola com um urubu dentro. Encontrou outra pessoa e disse:

– Vamos comer!

Pedro apertou a sacola e, nesse momento, se escutou um barulho: “chuu, chuu”; e apareceu café. Tomaram juntos o café. Pedro apertou de novo a sua sacola, se escutou de novo o barulho: “chuu, chuu”; e apareceram umas bolachas. Comeram as bolachas e, mais uma vez, se escutou o barulho da sacola: “chuu, chuu”; apareceu pão, que eles comeram. Depois apertou outra vez: “chuu, chuu”; apareceu caldo. Apertou a sacola: “chuu, chuu”; apareceu carne. Já para terminar, Pedro apertou a sacola e apareceu água, que eles beberam. O homem disse a Pedro:

– A tua criação é muito boa.

– Está bom – respondeu Pedro –, amanhã eu vou dar a você a minha criação. É bom para ir ao mato, a pessoa pode comer e ficar cheia.

No dia seguinte, Pedro pegou a sacola, apertou: “chuu, chuu”, apareceu café, e ele o tomou. Então Pedro foi embora e deixou a sacola. O homem estava transando com a sua mulher. O urubu saiu da sacola, entrou no quarto do casal e deu uma bicada na vagina da mulher, que gritou assustada. O homem se levantou com raiva e correu atrás de Pedro, que já tinha fugido. Não conseguiu achar a Pedro.

Pedro caminhou longe, muito longe, lá onde o céu se encontra com a terra. Queria subir ao céu para encontrar com Topana, mas Jurupari não permitiu. Jurupari disse:

– Só as almas podem subir.

Pedro replicou:

– Deixa falar com Topana.

– Não – respondeu Jurupari.

– Deixa falar com Topana.

– Não, não deixo, não pode.

Pedro insistiu muitas vezes, até que finalmente subiu ao céu. Viu Adão, que estava trabalhando com dinheiro e com livros. Adão estava sozinho.

– Vou trabalhar com Adão – disse Pedro. Mas Jurupari respondeu:

– Não, Adão fica sozinho, você não vai trabalhar com ele.

Jurupari tinha um camburão, um tacho muito grande onde estava esquentando breu. Jurupari advertiu-o:

– Você vai morrer, Pedro, eu vou jogar este breu bem quente na sua cabeça.

– Não precisa, Jurupari, dá-me a concha que eu mesmo irei derramar o breu quente na minha cabeça. Pedro estava mentindo. Quando Jurupari foi entregar-lhe a concha com breu, Pedro fez virar o tacho. Jurupari e muitas pessoas morreram. Então Pedro foi ao encontro de Topana.

Topana e Pedro conversaram. Topana disse a Pedro:

– Amanhã você vai descer à Terra.

Tinha acontecido uma grande alagação durante cinco dias, todos os homens e os animais tinham morrido. Topana mandou Pedro buscar areia, para ver se a terra tinha começado a secar depois da inundação. Topana queria que Pedro voltasse logo ao céu, mas Pedro não regressou. Pedro comeu os corpos mortos que estavam espalhados pela Terra e se transformou em urubu. Topana enviou a pomba boro, para que procurasse areia e trouxesse noticias de Pedro. Topana disse à pomba:

– Vai e não demora, você tem pouco tempo para retornar e contar-me o que aconteceu.

A pomba boro regressou e disse:

– Topana, Pedro virou urubu e não vai voltar; a terra já está seca, já há areia descoberta. Há muitos ossos espalhados. Pedro comeu a carne dos mortos, e só restaram os ossos.

Topana desceu à Terra com um livro grande, bapiro, só encontrou as ossadas, as almas estavam andando pela Terra. Pegou o livro e foi juntando os ossos dos mortos: juntava os braços, as pernas e a cabeça das pessoas. Topana passava por cima dos mortos, e eles reviviam. Topana perguntou a um deles:

– O que é que você vai fazer?

– Eu vou trabalhar na roça.

Então Topana dava uma mulher para essa pessoa.

– Fica para lá – disse Topana, e o homem ficou a um lado. Topana perguntou a outro:

– O que é que você vai fazer?

– Eu vou cortar seringa, vou ser seringueiro.

E Topana deu-lhe também uma mulher e pediu que ficasse a um lado. Topana continuou perguntando aos outros:

– E você, o que é que quer fazer?

– Não, eu não vou trabalhar, vou ficar assim mesmo.

– Então você vai para a água, vai virar peixe.

E assim aconteceu com os mortos que reviviam. Àqueles que queriam trabalhar, Topana dava uma mulher, e ficavam a um lado. De outro lado ficavam aqueles que não queriam trabalhar, e então viravam peixes e animais da água. Os que trabalhavam se transformaram em gente: uns em katukina, outros em kulina, outros em kanamari, outros em seringueiros. Os que não trabalhavam, iam para as águas e se transformavam em cobra, em sucuriju, em pirarucu e em peixes diversos.

Há muitas histórias sobre Pedro. Há também histórias de Tokaneri, que era igual ao Pedro…

Por Miguel Aparício Suárez (Operação Amazônia Nativa (OPAN) – miguelapas@yahoo.com.br).

Miguel Aparicio é antropólogo e atuou principalmente junto aos povos Suruaha (1995-2001) e Katukina do Biá (2004-2007), respectivamente nas regiões dos rios Purus e Jutaí, no Amazonas. É membro da Operação Amazônia Nativa (OPAN) e atualmente coordena o Projeto Aldeias – Conservação na Amazônia Indígena, apoiando processos de gestão territorial em diversas terras indígenas das bacias dos rios Purus, Juruá e Jutaí. Miguel integra também a coordenação do Fórum Mato-grossense de Meio Ambiente e Desenvolvimento (FORMAD).

Por causa de um amistoso preparatório para a copa do mundo entre Brasil e Zimbábue, há poucas semanas atrás, ouvimos falar diversas vezes desse desconhecido país africano. Provavelmente as únicas coisas que alguns poucos conhecem desse país do sul da África são as Cataratas Vitória (comparáveis às Cataratas do Iguaçu) e os altos índices de inflação (incomparáveis com qualquer outra economia no mundo). No ranking mundial de estados falidos, o Zimbábue aparece em segundo lugar, com péssimos indicadores econômicos, sociais e políticos. Taxa de desemprego de 80%, expectativa de vida próxima dos 40 anos, a maior inflação do mundo e o mesmo presidente no poder há mais de 20 anos são alguns dos fatores responsáveis por essa desonrosa colocação. Por outro lado, seus habitantes são pessoas vibrantes e alegres, contrastando ironicamente com a situação do país.

Em 2007, durante duas semanas, acompanhei e participei da rotina de um projeto de conservação no Zimbábue, chamado Painted Dog Conservation Project (www.painteddog.org). Trata-se de uma ampla e inspiradora empreitada na tentativa de preservar o Lycaon pictus, nome científico de um dos canídeos mais ameaçados do mundo, popularmente conhecido como cão-selvagem-africano.

Lembro-me, quando estava na graduação, do professor explicando que a Biologia da Conservação era uma ciência multidisciplinar. Depois vi esquemas conceituais em livros, onde vários círculos representando diferentes áreas do conhecimento se sobrepunham, formando, na área central, a Biologia da Conservação. Mas só fui perceber quão multidisciplinar a conservação realmente é após esse período no Zimbábue.

As fotos acima mostram um pouco da ampla diversidade de ações desse projeto conservacionista, que começou com um pesquisador, um guia local e uma moto velha e hoje mobiliza toda uma região em torno da conservação de uma espécie. Pesquisas ecológicas, combate à caça ilegal, atendimento veterinário, monitoramento de matilhas, ações de geração de renda, promoção da segurança alimentar e sensibilização da população local estão entre as atividades desenvolvidas. São mais de 70 pessoas trabalhando em busca de um mesmo objetivo, em um país onde oito em cada 10 habitantes não possuem emprego.

E dizem por aí que conservação só gera desigualdade social. 

Por Guilherme Ferreira (Instituto Biotrópicos – guilherme@biotropicos.org.br)

O fogo se assemelha mais a um herbívoro que aos outros distúrbios ambientais. Foto: Marilene Ribeiro.

Os textos dos antigos naturalistas eram repletos de descrições científicas, literárias e poéticas – estratégias discursivas utilizadas para registrar por inteiro a paisagem em que se encontravam. Essa tradição de escrita se perdeu com a modernização da forma de se fazer ciência, cada vez mais objetiva. Mas ainda hoje é possível encontrar, em meio aos áridos textos técnicos, lampejos de poesia.

 Recentemente, tropecei em um bom exemplo dessa escrita. Encontrei-a numa dissertação de mestrado, guardada entre centenas de outros volumes encadernados em negro, com letras douradas, numa estante da biblioteca universitária. O texto, que provavelmente só será lido por especialistas (como eu), tem um título tão desafiador quanto os demais, em Ciências Biológicas, marcados por uma dura especialização: “Paepalanthus polyanthus (Bong.) Kunt (Eriocaulaceae): espécie bioindicadora de biomassa vegetal aérea acumulada nos campos rupestres da Serra do Cipó após o fogo.”

 A dissertação versa sobre a possibilidade de se estimar, através das informações fornecidas por uma espécie de planta, há quanto tempo uma área de campo-rupestre encontra-se intocada por queimadas.

 Na introdução, o autor disserta sobre o fogo em ambientes naturais. Em regiões como as savanas africanas, os enormes rebanhos de herbívoros controlam o crescimento da vegetação e a ciclagem de nutrientes. Mas na savana brasileira – o Cerrado, no qual se encontram os campos rupestres -, os grandes pastadores são raros, e as queimadas fazem o papel dos herbívoros. Decerto o fogo é um herbívoro atípico, sem predadores e com uma dieta bastante variada (alimenta-se de matéria orgânica viva e morta, além de plantas impalatáveis para os animais, e não necessita de proteínas para seu crescimento). Por outro lado, dificilmente o fogo pode ser comparado a outros distúrbios naturais como enchentes, ciclones ou tempestades, já que, assim como os animais herbívoros, converte moléculas orgânicas complexas em produtos minerais e orgânicos.

 Em sua dissertação, Carlos Abraham de Knegt Miranda faz essa bela descrição do fogo, como se esse fosse um herbívoro:

 “Como uma versão gigantesca de uma criatura amebóide, o fogo emite pseudópodos sobre a vegetação e a engolfa, extraindo dela a energia que incorpora ao seu corpo ígneo, excretando cinzas, fumaça, gás carbônico, vapor d’água e outros gases, e deixando para trás somente as partes que eventualmente não conseguiu digerir de seu ‘alimento’ sob forma de madeira carbonizada. Neste processo de alimentação, o fogo assume as características da vegetação que o sustenta, do ambiente físico que o recebe, dos ventos que o impelem e da topografia que o conduz.”

 Essa passagem serviu de epígrafe à dissertação, provavelmente por sua inadequação ao discurso científico.

Por Ana Carolina Neves (Instituto Biotrópicos – ananeves@biotropicos.org.br)

Foto: Marilene Ribeiro (Instituto Biotrópicos – marilene@biotropicos.org.br)

No evento "Salvem os sapos!" alunos do curso de Ciências Biológicas da UFVJM fizeram várias atividades de conscientização sobre os anfíbios com alunos do ensino médio (foto: Izabela Barata).

Em Diamantina, tentamos salvar os sapos. Há quem pense que eles não merecem atenção, há quem diga que são as coisas mais nojentas do mundo e há aqueles que os consideram muitíssimo interessantes como objeto de estudo.

Você pode encontrar uma dezena de definições para a palavra “salvar” no dicionário, enquanto para “sapo” você encontra apenas três. Engraçado usar estas duas palavras juntas porque parece até meio provocativo querer salvar os sapos: “Mas justo os sapos?!”, poderia alguém perguntar. Eu poderia resumir a experiência que tivemos há algumas semanas, da seguinte maneira: aquilo que precisa ser salvo, precisa, antes de tudo, ser conhecido.

Durante duas semanas, fizemos palestras para estudantes, do 4ª ao 9ª ano do ensino fundamental, sobre curiosidades, mitos e verdades sobre anfíbios: sapos, rãs e pererecas. Inicialmente acreditava que seria extremamente fácil chamar a atenção para estes animais porque pertenço àqueles que os consideram interessantes objetos de estudo.

Começou com pouca gente, poucos envolvidos, poucos interessados. A idéia foi crescendo e as atividades foram ganhando corpo. Foi juntando mais gente. Os alunos começaram a se interessar. A curiosidade cresceu. Durante as palestras as reações foram as mais diversas, divergindo entre a completa repulsa até a absoluta afeição. Para estes alunos, os sapos puderam representar os risos, as caretas, a antipatia, a afetividade, a incredulidade, a curiosidade.

De mais estimulante, as palestras geraram respostas que apontam o interesse dos alunos pelo novo. Descobertas sobre sapos coloridos, sapos gigantes e minúsculos, sapos venenosos, extintos, raros, sapo de casa, sapo da rua, sapo do mato. Sapo que canta, que põe ovos, que carrega girinos. Sapos, rãs e pererecas: tudo igual, mas diferente. Se antes eles acreditavam que existiam 30, 70, 200 espécies de anfíbios no mundo, agora eles sabem que, somente no Brasil, existem mais de 870 espécies, muitas delas ameaçadas de extinção. O que parecia inimaginável, inconcebível, começou a fazer sentido, a se tornar real. Agora seria possível ajudar a salvar os sapos.

Parafraseando Guimarães Rosa: “Sapo não pula por boniteza, mas por precisão”. Quem pula, eleva-se do chão, salta, sobe, transpõe. A precisão é necessária, é imediata. Estes termos resumem bem o que fizemos por aqui. Nestes dias, saltamos por cima do preconceito, dos mitos e fomos precisos em realizar algo novo, necessário e indispensável para ajudar a salvar os sapos. Tentamos. E, felizmente, posso afirmar que o conseguimos com sucesso.

*           *           *

O dia 30 de abril de 2010 foi dedicado internacionalmente à divulgação da importância e conservação dos anfíbios. Para marcar a data, o Instituto Biotrópicos realizou, durante duas semanas, um projeto de educação ambiental nomeado “Salvem os sapos”, inspirado nas ações da ONG americana conhecida como “Save the frogs”.

Para ver os resultados do concurso de desenhos, clique aqui.

Izabela Barata (pesquisadora do Instituto Biotrópicos e professora da Universidade Federal dos Vales do Jequitinhonha e Mucuri – izabela@biotropicos.org.br)

Conheci um homem de olhos coloridos que vivia fincando pedaços de árvores mortas no pasto.

Passava dias amontoando galhos, gravetos e tocos no meio da braquiária.

De tempos em tempos, avistavam-se aqueles murundus eriçados e secos tropeçando no  pasto lisinho.

Ou um pau comprido, esganiçado e lívido erguendo-se estrangeiro, do dia para a noite, na retidão infinita da forragem verde.

E o homem num vaivém com as pilhas de madeira torta pela paisagem rural estagnada.

Um dia, um passarinho pousou em um dos seus tocos mortos.

De repente, notavam-se vários deles balançando lá no alto do galho esganiçado.

Outros tantos preferiram empoleirar-se nos montinhos de pau colocados mais próximos do chão, onde arriscavam frequentes pulinhos e bicadas no meio dos gravetos embolados.

Vinham bandos dependurar-se na ramaria póstuma que o homem juntava.

Pencas coloridas agarradas nos galhos.

Agora entendo: o homem de olhos coloridos plantava pés de passarinho.

*     *     *

Dr. Ademir Reis é referência nacional em utilização de técnicas nucleadoras para restauração ecológica de paisagens degradadas. Essas técnicas consistem na aplicação dos conhecimentos sobre teia alimentar, etologia e sucessão secundária, visando, dentre outras coisas, o enriquecimento da chuva de sementes no solo dessas paisagens.

O texto faz referência à ‘transposição de galharia’ e aos ‘poleiros artificiais’– métodos nos quais são posicionados, estrategicamente, dentro da área degradada, troncos, leiras de galharia e árvores mortas, que servirão de abrigo para animais que fazem parte da dieta de várias aves, como artrópodes, répteis e pequenos mamíferos. Elas funcionarão também como poleiros, atraindo as aves do entorno e, com elas, as sementes. O texto ilustra a simplicidade e eficiência da técnica, bem como a dedicação do professor no seu ofício.

Por: Marilene Ribeiro (Instituto Biotrópicos – marilene@biotropicos.org.br)

Amanhecer na Serra do Cipó, MG. Foto: Jonathan Macedo

Na primeira manhã do nosso primeiro dia de campo, tivemos uma revelação.

O celular despertou às seis horas. Fazia frio, mas não como na expedição do ano anterior, quando, de madrugada, o termômetro registrou a mínima de quatro graus no alto da Serra do Cipó. Estávamos novamente em abril, mês de poucas chuvas, de céu limpo e manhãs claras. Nos dias que se seguiriam, acordaríamos em meio a um nevoeiro que só iria se dissipar por volta das nove horas. Mas, naquela manhã, o ar estava claro o suficiente para termos uma visão ilustrativa de um processo que pode explicar em parte o fato da Serra do Espinhaço ser uma das regiões mais ricas em espécies endêmicas do mundo, principalmente de plantas.

O alojamento fica em um dos pontos mais altos da região, e da varanda temos uma vista ampla da serra do Espinhaço. Naquela manhã, havia um manto de nuvens cobrindo os vales e os sopés da serra, deixando à mostra apenas os topos dos morros. Era como um mar de ondas brancas e centenas de ilhas, a perder de vista.

A imagem ilustra a insularização dos topos de morros. Isso significa que a parte mais alta das montanhas tem características ambientais e biológicas diferentes da parte mais baixa. A região menos elevada funciona como uma matriz – ou um “mar” –, de onde emergem os topos de morros como ilhas. Por ter condições próprias, pode ser intransponível para alguns organismos em possíveis movimentos de dispersão.  Como o isolamento reprodutivo de populações é um dos fatores que levam ao surgimento de novas espécies, o isolamento dos organismos nos topos de morros poderia explicar, em parte, a existência de tantas espécies, sobretudo vegetais, restritas a uma única serra ou a áreas bastante limitadas ou apenas aos pontos mais altos das montanhas.

O funcionamento dos topos de morros como ilhas é bastante estudado, e tem sido utilizado para explicar a ocorrência de endemismos em diversas localidades do mundo. Na Serra do Espinhaço, isso funcionaria? Provavelmente, sim, para plantas e outros organismos sésseis, com dificuldades de dispersão ou com grandes exigências quanto às condições do seu habitat.  É bom deixar claro que as populações de espécies restritas aos topos de morros geralmente distam entre si de centenas de quilômetros, e as pequenas distâncias que observamos (foto) não seriam suficientes para levar ao isolamento das populações.

A visão que tivemos foi meramente ilustrativa. Mas foi uma boa visão para uma manhã de segunda-feira.

Por: Ana Carolina Neves (Instituto Biotrópicos – ananeves@biotropicos.org.br) / Foto: Jonathan Christopher Bausch Macedo (graduação em Ciências Biológicas, UFMG – jon-j-j-j@hotmail.com).